domingo, 5 de junho de 2011

Gregorio Vivanco Lopes
O cansaço e a insônia às vezes nos pregam peças. Há certo tipo de cansaço mental que provoca insônia. Outra noite, como estava com dificuldade para dormir, acabei por levantar-me, peguei na estante o primeiro livro que encontrei, recostei-me outra vez e comecei a ler.
Por mal dos meus pecados, era um compêndio de teologia da libertação, mais próprio a aumentar a insônia do que a servir de ninna nanna.
Os autores reproduzidos na coletânea expunham cada qual suas idéias, díspares entre si, num conjunto caótico. Leitura desagradável e rebarbativa, mas o cansaço não me permitiu levantar outra vez para procurar um livro melhor. Fui folheando o calhamaço e acabei por descobrir um ponto comum que aflorava naquela confusão de noções.
Todos esses “teólogos”, de um modo ou de outro, “profetizavam” a transformação da Igreja, de modo a constituir ela, num futuro que eles queriam bem próximo, um conglomerado de pequenas comunidades, vivendo uma religiosidade fechada sobre si mesma, esparsas em meio a um mundo laico e paganizado, com o qual tais comunidades não se preocupariam e nem o mundo com elas.
Nada de Papa, de dioceses, de paróquias, de ordens religiosas, nem mesmo de sacerdotes. Tudo isso deveria ser varrido do mapa como coisa medieval. A comunidade reunida é que celebra. Argumentavam que assim havia sido a Igreja primitiva, deturpada pelos acréscimos feitos ao longo dos séculos.
A descoberta dessa “mensagem” me acabrunhou mais do que o cansaço que já pesava sobre mim. Será que essa demolição da Igreja, que mais parece um plano do que uma profecia, surtirá efeito? Sim, eu sei que Nosso Senhor prometeu que a Igreja não será destruída. Mas até onde pode chegar o desmantelamento das instituições e o consequente desfiguramento da Igreja? Uma dúvida entretanto o maldito livro me colocou: terá sido essa a face da Igreja primitiva?
* * *
Com um movimento brusco, afastei de mim o calhamaço, que rolou para o piso com algum estrépito. O ruído assim produzido não me permitiu ouvir o estalo característico da porta que se abria. Quando me dei conta, estava diante de mim um desconhecido. Estatura entre média e alta, rosto ligeiramente brilhante, gestos afáveis mas firmes, só não consegui fixar seu olhar. Curiosamente, ele irradiava paz. E, como se tivesse o dom de adivinhar os pensamentos, disse:
“Não se preocupe, vou levá-lo a conhecer a Igreja primitiva”.
“Quem quer que você seja, está blefando” ― respondi um tanto agastado.
“Não faça juízos apressados” ― acrescentou o jovem, que tinha o dom de ganhar minha confiança. E prosseguiu dizendo que outrora levara Habacuc da Judéia para a Babilônia, pelos ares, pegando-o pelos cabelos, e chegando até a cova onde estava Daniel.
“Mas esses eram profetas ― retruquei ― e eu sou um grande pecador”.
O anjo, pois só então compreendi que se tratava de um anjo ― como sou lento para perceber, meu Deus! ― estendeu sua mão para mim, e aí eu acordei.
* * *
Acordei, pasmem! em meio a uma comunidade da Igreja primitiva. Eu via e ouvia tudo quanto diziam, mas eles não se davam conta de minha presença.
Homens, mulheres conversavam, outros rezavam num canto, crianças brincavam, numa espécie de catacumba, parecia que esperavam alguém. Nisso, por um corredor que antes eu não notara, chega um personagem de barbas muito brancas, olhar luzidio, cheio de força e majestade, aureolado de santidade.
Todos se ajoelham para recebê-lo, alguns lhe beijam os pés. Era São Pedro. Compreendi então que a figura do Papa estava muito presente para eles.
Começou Pedro a falar e percebi que ele viera para ordenar alguns presbíteros, inclusive sagrar um bispo, antes de uma viagem que faria. Celebrou uma Missa, de modo muito semelhante ao que hoje chamamos rito tradicional, a que assisti e durante a qual operou as ordenações dos clérigos. Todos os presentes comungaram de joelhos, recebendo a Hóstia na boca, com muita devoção. Aproximei-me também para comungar, mas Pedro não me viu.
Pela homilia que fez, fiquei sabendo que estava de partida para Roma, onde previa que seria martirizado. Todos estavam emocionados, alguns choravam.
Pedro consolou-os dizendo que sempre haveria um vigário de Cristo no mundo. Disse mais, que os que ali estavam eram uma semente da Igreja que, pela ação do Divino Espírito Santo, deveria depois desabrochar numa árvore frondosa, que cobriria toda a terra com seus galhos e produziria seus frutos.
Em minha cabeça produziu-se então algo à maneira do famoso estalo de Vieira. Compreendi que aquele grupo não se considerava como algo perfeito e acabado, mas sim como o primeiro núcleo de uma instituição muito maior e mais organizada que deveria vir. Eles viviam dessa esperança e para isso faziam apostolado, lutavam e estavam dispostos ao martírio. Se alguém lhes dissesse que a Igreja deveria ficar sempre reduzida a pequenos grupos como aquele, ficariam tremendamente decepcionados.
Em suma, compreendi que a Igreja, em seu peregrinar terreno, passa por diversas fases. Aquela era uma fase inicial, mas nem de longe deveria ser a única.
Estava na perspectiva deles que florescessem as catedrais, as cruzadas, as ordens religiosas, a devoção a Nossa Senhora, a Hierarquia eclesiástica, a legislação canônica, a influência sobre a sociedade temporal, e tudo o mais que fez o brilho e a grandeza da Igreja. Pensei: como estão errados esses “teólogos” modernos do calhamaço. Eles seriam execrados naquelas próprias comunidades primeiras que imaginam reproduzir.
O que é preciso é lutar pela restauração da Igreja no seu esplendor, cogitava eu, quando um misterioso raio de sol penetrou não sei por onde naquela catacumba e incidiu diretamente sobre minha face. Só então me dei conta de que, levado pelo cansaço da noite anterior, tinha esquecido aberta a janela de meu quarto, que era agora invadido pelo sol.
Literalmente pulei para fora da cama. O calhamaço lá estava no chão, meio avariado pela queda brusca que sofrera. Não sei o que aconteceu naquela noite. Não me perguntem, porque não sei.
Só sei que entendi perfeitamente que a árvore não pode e não deve minguar para voltar a ser semente. Seria um aleijão da natureza e da graça.

FONTE IPCO

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